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Reflexões sobre um mundo em pandemia
Por Carla Visi
A canção de Raul Seixas “O dia em que a terra parou”, lançada no disco de mesmo nome em 1977, e o título em português de um filme de 2008, “The Day The Earth Stood Still”, representam bem aquela velha ideia antropocêntrica de que o mundo gira em torno do ser humano. No entanto, o filme mostra o quanto a nossa espécie pode ser nociva para o planeta, enquanto a voz lamentosa de Raul demonstra um certo desânimo diante da ausência total de atividade humana. O seu sonho maluco, de fato, se concretizou em diferentes estágios nos diferentes locais do planeta devido à presença silenciosa e microscópica de um vírus. Porém o dia em que as pessoas do planeta inteiro decidiram ficar em casa possibilitou a manifestação de outras vidas onde antes só havia pressa e poluição.
As imagens de peixes nas águas límpidas dos canais de Veneza, animais passeando nas ruas vazias de algumas cidades, fotos de montanhas longínquas que viviam há décadas encobertas pela fumaça e os registros de satélites da redução nas emissões de gases para a atmosfera seriam animadores se a causa dessas alterações ambientais não fosse o comportamento humano diante de uma pandemia. Além da grande probabilidade de aumentar o ritmo do impacto ambiental depois desta fase para a recuperação da tão almejada retomada econômica, ainda teremos que nos adaptar a esta nova realidade: existe um imprevisível vírus à solta pelo planeta. Claro que, historicamente, a humanidade já venceu muitas batalhas contra doenças exterminadoras: a varíola, o sarampo, a peste bubônica, a tuberculose, a malária e outras gripes; medicamentos controlam a AIDS e reduzem a mortalidade de outras doenças crônicas. Mas há uma pergunta que não quer calar: como ter pessoas saudáveis em um planeta doente?
O futuro é imprevisível para uma sociedade mundial em que 20% consomem 80% de tudo o que é produzido e a desigualdade social gritante é massacrada pela culpa do fracasso sustentado por uma estrutura viciada em corromper e concentrar a renda e o poder nas mãos de poucos. Quem tem muito vai conquistar cada vez mais e quem tem pouco ou quase nada vai amargar um futuro incerto e com poucas perspectivas. Assim está acontecendo na Amazônia, onde o desflorestamento desde o início do ano até o mês de maio aumentou 34% em relação ao mesmo período de 2019. São 2.032 quilômetros quadrados de devastação. O povo indígena está sofrendo não somente com a contaminação da COVID-19, mas também pelo descaso das políticas governamentais que estimulam a exploração das reservas e áreas de preservação por madeireiras, mineradoras e atividades agropecuárias.
Saindo das áreas remotas para os centros urbanos, o estado de alerta para evitar a contaminação tem gerado mais lixo, que, o pior, é muitas vezes descartado de maneira incorreta. Além de todo o lixo hospitalar resultante dos tratamentos aos doentes afetados pelo vírus, que precisa ser esterilizado e incinerado, há as máscaras, luvas, materiais plásticos e de limpeza como o álcool em gel, sabão e água sanitária, que passaram a ser mais consumidos e consequentemente despojados de alguma maneira no meio ambiente. Em cidades com deficiência no saneamento básico e coleta de lixo, esses resíduos podem também desencadear mais contaminação e poluição ambiental, incluindo nesse grupo de risco os catadores de material reciclável. Fica claro que a pandemia causada pelo vírus Sars-CoV-2 mexeu com todo o planeta, entretanto os efeitos são bem mais nocivos onde a pobreza e a ausência de infraestrutura expõem a população.
Através de cálculos complexos, a Global Footprint Network (GFN) tem mensurado a pegada ambiental da população mundial desde 1970. E depois de 15 anos é a primeira vez que o Dia de Sobrecarga da Terra, ou seja, o dia em que a humanidade esgota todos os recursos naturais capazes de renovação disponíveis para o ano inteiro, acontece mais tarde. Foi previsto para o dia 22 de agosto, enquanto que em 2019 atingimos esse patamar de uso dos recursos naturais em 29 de julho. Segundo dados da GFN, a humanidade, atualmente, usa 1,6 planeta. Em síntese, acumulamos somente no ano passado um débito de 60% dos recursos naturais indevidamente consumidos. E o planeta já vem cobrando essa conta.
A atual pandemia acontece em um momento histórico em que a humanidade já enfrenta três crises estruturais entre as sociedades hegemônicas e o sistema Terra. É fato que precisamos decrescer para evitar o colapso, mas isso exige consciência socioambiental. A emergência climática, a redução da biodiversidade e o adoecimento dos organismos, principalmente intoxicados pela indústria química, são desafios que devemos encarar durante e após a pandemia. Quando pensamos em “parar” o planeta, não significa parar os movimentos de rotação, translação etc., mas ampliar a percepção de mundo e construir valores a favor da vida ao repensar o modelo até então almejado, para assim ajustar o curso em direção à fraternidade universal e à manutenção da habitabilidade da Terra pela espécie humana.
O importante é que, ao lado da crise, há também muita esperança. Grupos de pessoas no mundo inteiro se mobilizaram para ajudar os mais necessitados e vulneráveis neste momento de pandemia. Entre as campanhas mais motivadoras está o arco-íris das crianças, com uma frase emblemática: “Vai ficar tudo bem”. E, de fato, podemos ficar melhores se aprendermos a lição. Ficou evidente como a nossa relação com a natureza tem sido negligente e o quão urgente se faz uma mudança de comportamento com menos emissões de gases de efeito estufa e poluentes, menor consumo de recursos naturais e produção de resíduos, mais consciência ambiental e responsabilidade nas nossas escolhas. Afinal, este é o único planeta que temos para viver, então que seja com mais harmonia e qualidade.
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